Indígenas reagem à tentativa de redução de seu território no Pará
Demarcada pela União e homologada pela Presidência da República há 13 anos, em 2007, uma terra indígena no Pará sofre pressões de ocupantes ilegais e políticos para que seu tamanho seja reduzido com o apoio do governo de Jair Bolsonaro. Seria a primeira vez, desde o início do governo, no ano passado, que uma terra indígena teria seus limites revistos.
A Terra Indígena Apyterewa, reconhecida como território tradicional dos índios parakanãs desde 1982, é hoje ocupada ilegalmente por mais de 1,5 mil não indígenas, segundo estimativa de indigenistas e indígenas. A retirada dos invasores era uma condicionante judicial para que a União obtivesse a licença ambiental de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte (PA).
A usina foi inaugurada pela então presidente, Dilma Rousseff (PT), em 2016. Mas a retirada dos invasores nunca foi cumprida integralmente. O governo de Michel Temer (2016-2018) abandonou o plano de retirada.
A partir de janeiro do ano passado, segundo os indígenas, a ocupação ilegal recrudesceu porque os invasores viram no governo Bolsonaro uma oportunidade de tentar rever a demarcação do território, de 770 mil hectares.
Nesta semana, os indígenas da etnia parakanã tiveram que se reunir em assembleia, em plena pandemia do novo coronavírus, para manifestar, em carta aberta, o repúdio à hipótese de redução da Apyterewa, demarcada e homologada pela Presidência da República há 13 anos, em um 19 de abril, Dia do Índio.
O caminho para a tentativa de redução envolve a sinalização da AGU (Advocacia Geral da União) para, em nome da União, aceitar uma suposta "conciliação" entre indígenas e invasores. Um primeiro passo foi conseguido pelos agricultores e pela prefeitura municipal no STF (Supremo Tribunal Federal) no último dia 26.
O ministro Gilmar Mendes acolheu um pedido da prefeitura de São Félix do Xingu (PA), protocolado em um mandado de segurança que tramita na corte desde 2007, e autorizou o envio do processo para um certo "núcleo de conciliação" -não explicou qual núcleo, mas é uma possível referência a um setor da AGU -, informando que há "predisposição dos entes públicos litigantes para uma provável conciliação". Ele mandou intimar a União. Com a decisão, ficou adiado o julgamento do processo, que chegara a ser marcado para ocorrer virtualmente no STF no dia 24 de abril.
Os indígenas não são parte do processo e só descobriram a decisão porque indigenistas monitoram a movimentação dos processos no STF que afetam direitos dos índios. Em carta aberta divulgada nesta quinta-feira (4), os parakanãs repudiaram a decisão do STF e disseram que "atos de conciliação" são "redução da terra indígena, atendendo os interesses de não indígenas que vêm invadindo, desmatando e garimpando ilegalmente nosso território.
"Nós, povo parakanã, não aceitamos a tentativa de acordo, pois no passado o governo já reduziu nossa terra em mais de cem hectares e, mesmo assim, os posseiros continuam invadindo nosso território", diz a carta aberta.
Os parakanãs voltaram a pedir, na carta aberta, que a União promova a retirada de todos os invasores, a fim de cumprir a condicionante de Belo Monte, que já foi confirmada por várias decisões judiciais favoráveis aos indígenas.
O próprio Gilmar Mendes já havia recusado, em outubro de 2019, uma decisão favorável aos agricultores e à prefeitura local porque entendeu que "as provas pré-constituídas que acompanham os autos demonstram ter sido oportunizados a ampla defesa e o contraditório aos interessados nas terras demarcadas, tendo sido seguido o procedimento do decreto 1.775, não verificando assim a existência de direito líquido e certo a amparar a pretensão dos impetrantes", conforme o ministro escreveu no mesmo despacho do dia 26.
A demarcação da Apyterewa ocorreu após um amplo processo previsto no decreto 1775 que inclui ouvir as partes contrárias.
Na carta aberta, os parakanãs afirmaram que "durante décadas estamos tentando regularizar nosso território tradicional pelas leis dos 'torias' (não indígenas) porém os governos sempre criam obstáculos".
"O dever de qualquer governo em respeitar a nossa cultura, tradição e território tradicional ocupado não é respeitado. O atual governo ainda tem indicado representantes de grandes latifundiários no poder, que estão interessados em reduzir nossos direitos, e desrespeitando a Constituição, pretendem vender terras públicas. Agora, em tempo que o mundo enfrenta uma pandemia, muitos não indígenas incentivados por discursos e atos de diversos políticos, aproveitam adentrar mais em nosso território na prática de crimes contra nosso povo e contra a nação brasileira", diz a carta aberta dos parakanãs.
Comemoração
Por outro lado, os não indígenas comemoraram a decisão do STF. Em um vídeo publicado nas redes sociais, o advogado e procurador da prefeitura de São Félix do Xingu, Igor Franco de Freitas, explicou que eles querem um outro laudo antropológico - o oficial, que integra o processo de demarcação, confirmou os limites da terra e os direitos dos indígenas sobre o território.
"O despacho [do STF] remete o processo para o núcleo de conciliação. Primeiramente será ouvida a União sobre essa possibilidade. E esse pedido nosso é tão somente para que nesse primeiro momento seja refeito o laudo antropológico. Porque nós, é de conhecimento de todos da região, que na questão Apyterewa, na sua grande extensão, não tem índio", disse o advogado nas redes sociais.
O que o advogado não explicou no vídeo é que os índios evitam circular na terra indígena justamente para que não ocorra um confronto com os invasores. Devido à presença dos invasores, os cerca de 500 parakanãs vivem acuados em uma pequena parcela da terra indígena. Eles evitam sair em caçadas mais longas porque temem encontrar os invasores no caminho.
"O ministro oportunizou e disse da necessidade do diálogo entre índios e não indígenas, nesse ato representado pela União", afirmou o advogado, no vídeo.
Em áudios distribuídos em grupos de aplicativos de telefones, moradores de São Félix do Xingu confirmam que o objetivo final é extinguir a homologação da terra indígena. "Nós conseguimos um despacho do ministro Gilmar Mendes no STF em que ele determina que o processo seja remetido para a conciliação. E nós pedimos, nessa conciliação, para que seja refeito o laudo antropológico. O laudo antropológico sendo refeito, cai por terra toda a questão Apyterewa, entendeu? Então isso foi uma conquista muito grande porque o próprio STF entendeu por bem a conciliação. Então isso foi uma conquista, um passo muito grande para o resultado final e positivo para cair por terra a homologação da questão Apyterewa", afirma um dos moradores.
'Avaliando o caso'
Procurada pela coluna, a AGU (Advocacia Geral da União) foi indagada sobre se está disposta a iniciar alguma "conciliação" entre ocupantes ilegais e indígenas. A resposta foi a seguinte: "A Advocacia-Geral da União está avaliando o caso”.
Também procurada pela coluna, a assessoria da Funai afirmou: "Demandas relacionadas a questões judiciais devem ser encaminhadas para a Advocacia-Geral da União, responsável pela representação dos órgãos do Poder Executivo Federal no âmbito judicial. A Funai ressalta que está sempre disposta ao entendimento, desde que obedecendo as normas legais”.
A assessoria da PGR (Procuradoria Geral da República) informou que o órgão não foi intimado sobre a decisão do STF e, por isso, não tem conhecimento de uma suposta tentativa de "conciliação”.
Procurado, o Ministério da Justiça não havia se manifestado até o fechamento deste texto.
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