Altamira: a vida na cidade mais violenta do Brasil
por Danielle Nogueira
13/12/2017 4:30
ALTAMIRA (PA) — A cidade de Altamira, no Pará, foi alçada ao posto de mais violenta do Brasil em 2015, segundo levantamento feito pelo GLOBO para o projeto “ A Guerra do Brasil”. Naquele ano o município registrou 124,6 homicídios por 100 mil habitantes, bem à frente de cidades que costumam estampar o noticiário de chacinas, balas perdidas e tiroteios, como Rio (23,4) e São Paulo (13,5). Há dez anos, o município sequer aparecia na lista dos mais violentos, com taxa de 53,2 homicídios.
Esse salto reflete não apenas particularidades de Altamira, que, ao ser diretamente impactada pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, experimentou uma desorganização da vida social da cidade, como também se insere num fenômeno nacional que aponta para crescimento da taxa de homicídios nas regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste e de estabilidade nas regiões Sul e Sudeste nos últimos dez anos.
TRÊS FILHOS ASSASSINADOS
— Ele tinha ido à borracharia para lavar a moto. Recebeu um tiro nas costas quando segurava a mão de dois filhos. Só escutei os tiros. Foi no final dessa rua aí.
Não há lágrimas escorrendo no rosto nem voz embargada. Sonia Fonseca, de 54 anos, conta a morte do filho como se já tivesse se acostumado com a violência que tomou conta do município de Altamira, no Pará, para onde se mudou com a mãe e os irmãos nos anos 1970. Foram três filhos assassinados, todos com idades entre 27 e 28 anos. Os dois últimos, em 2015, num intervalo de apenas três meses.
Nascida no interior do Amazonas, na pequena Urupá, Sonia mora no Reassentamento Urbano Coletivo (RUC) Jatobá, o mais violento dos cinco RUCs — um sexto está em construção — que receberam a população ribeirinha, removida durante a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Foi lá que morreram Edimilson, que estava na moto, e Augusto, o irmão caçula, assassinado enquanto dormia. Ambos tinham envolvimento com tráfico de drogas, admite a mãe.
Nove anos antes fora a vez de Marcos, executado por cabos do Exército. Com a família desestruturada, Sonia ficou com a guarda de sete netos, o mais velho de 13 anos. É com o salário mínimo que recebe como merendeira de uma escola municipal que ela sustenta as crianças. O marido, doente, vende o que o casal planta nos fundos da casa.
— Eu vivo trabalhando, não vou vender uma droga para ter dinheiro mais fácil. Foi assim que criei os meninos. Mas, você sabe, quando forma o homem, eles são donos da vida deles.
A partir dos anos 2000, houve crescimento da renda nas pequenas e médias cidades brasileiras. Se, por um lado, o desenvolvimento econômico costuma levar ao aumento do número de empregos, desestimulando a criminalidade, por outro, a maior circulação de dinheiro é um terreno fértil para o tráfico de drogas. E quanto mais enraizado e amadurecido está o mercado ilícito de entorpecentes, maiores os índices de violência, especialmente de homicídios, dizem os especialistas.
— Por ser um mercado sem regulação, o tráfico de drogas resolve seus conflitos com base na violência. A disputa de mercado, a conquista de território, as dívidas acabam resultando em mortes. A ausência do poder do Estado favorece a criminalidade — diz Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea e um dos autores do Atlas da Violência de 2017, que também colocou Altamira no topo das cidades mais violentas do país, com base em dados de 2015.
O levantamento feito pelo GLOBO considera os óbitos por ocorrência (a morte é contabilizada na cidade onde a pessoa morreu), e o Ipea considera óbitos por residência (morte contabilizada na cidade onde a pessoa mora).
RIVALIDADE LADO A LADO
Na Altamira pré-Belo Monte, o território era divido entre gangues rivais, que se concentravam nas áreas alagadas da cidade, onde ficavam as palafitas. Com o empreendimento, foi preciso remover a população ribeirinha e reassentá-la. Nesse processo, trabalhadores e pessoas ligadas ao tráfico ganharam novas casas nos Reassentamentos Urbanos Coletivos.
No entanto, segundo pesquisadores e líderes locais, as relações de vizinhança não foram respeitadas pelo consórcio Norte Energia, responsável pela usina. Moradores perderam referências e uma espécie de rede de proteção informal, uma vez que não sabiam mais quem morava a seu lado. E traficantes rivais passaram a dividir o mesmo território, dando início a uma guerra sangrenta.
— As relações de poder características das áreas onde essas pessoas moravam foram ignoradas. Na reorganização territorial, inimigos passaram a disputar espaço para reconquistar território — diz Assis Oliveira, estudioso de fenômenos da violência e professor da UFPA.
Segundo relatos de um ex-traficante, há dois grupos que atuam no tráfico de drogas em Altamira: Comando Classe A (CCA) e Família do Norte. A polícia local investiga uma possível ligação entre esses grupos e organizações criminosas de atuação nacional, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), que inspiram pichações em muros de casas nos RUCs, como "É nois PCC".
Além da redivisão territoral, com Belo Monte, a população de Altamira explodiu. A hidrelétrica será a terceira maior do mundo quando estiver concluída, em 2019. Um empreendimento de proporções gigantescas como esse atraiu gente de todos os cantos. No pico das obras, em junho de 2014, havia 33.115 pessoas trabalhando na usina. É quase um terço da população da cidade em 2010, quando havia 99.075 habitantes, segundo dados do Censo.
Embora a hidrelétrica em si tenha sido construída em um município vizinho (Vitória do Xingu), Altamira abrigou boa parte desses trabalhadores e foi mais impactada ser ter porte maior, com mais infraestrutura. Hoje, restam 2.779 trabalhadores na usina.
— Atualmente a maior preocupação no município são os homicídios. Crimes com características de execução e com fortes indícios de vínculo com questões do tráfico de drogas. Os índices de crimes na região foram impulsionados pelo aumento da população, devido ao projeto de Belo Monte — afirma Silvio Maués, diretor de Polícia do Interior da Polícia Civil do Pará.
FILHO PERDIDO PARA O TRÁFICO
O corretor de imóveis Alexandre Cavalcanti, de 34 anos, perdeu o filho Tiago para o tráfico. Assassinado há dois anos, o adolescente chegou a ser preso com papelotes de cocaína. De nada adiantaram as tentativas do pai de tirá-lo da cidade. Na versão da família, Tiago foi executado pela polícia ao ser encontrado em uma casa com produtos roubados, para onde teria sido atraído “por falsos amigos” que praticaram o roubo. Na versão da polícia, ele participou do assalto e foi morto, aos 16 anos, na troca de tiros com os policiais.
— Antes (de Belo Monte), você conhecia todo mundo que estava ao seu redor. Depois, as pessoas ficaram estranhas. Tiago estava no lugar errado na hora errada — lamenta Cavalcanti.
A chegada de forasteiros propicia violência porque eles tendem a ter menos cuidado com a cidade, uma vez que não pertencem ao tecido social local e estão ali de passagem, segundo Jaime de Souza, da UFPA:
— Além disso, como essas pessoas chegam quando o projeto já está em andamento, suas demandas são desconhecidas quando da preparação do projeto simplemeste porque elas ainda não são sujeitos desse processo.
Souza teme novo impacto sobre Altamira com o projeto da canadense Belo Sun, que pretende explorar ouro no município vizinho Senador José Porfírio. O processo de licenciamento do novo projeto está suspenso por ordem da Justiça.
CASA INVADIDA TRÊS VEZES
A professora de artes Mariene Gomes de Almeida, de 54 anos, teve a casa invadida três vezes este ano. Na última, em junho, não apenas teve roubados equipamentos como TV, DVD e computador, como também foi torturada pelos bandidos. A invasão ocorreu de madrugada. Mariene acordou com os latidos dos cachorros e percebeu que a luz do lado de fora tinha se apagado. Pensou que fosse um problema no quadro de energia e abriu a porta para consertar a possível falha.
— Foi quando entraram, já me batendo e me xingando. Diziam o tempo todo que iam me matar. Chegaram a me amarrar e quebraram uma mandala na minha cabeça. Mas lutei muito com eles. Perguntavam onde estavam o ouro e o dinheiro. Até que fiquei quieta e comecei a rezar. Não sei quanto tempo eles ficaram na minha casa, mas pareceram horas — conta Mariene, que até hoje acorda duas a três vezes por noite.
Os bandidos — ela não sabe dizer quantos eram — fugiram na moto da professora. Após ouvir o barulho do motor, Mariene conseguiu se desamarrar e bateu à porta da vizinha para pedir ajuda. Mudou-se para a casa da sobrinha, mas sente falta de seu canto. Mesmo com medo, planeja voltar para casa.
— Medo a gente tem. Mas é minha casa, meu lar. E eu não tenho condição de pagar aluguel — diz a professora, que ganha pouco mais de R$ 3 mil por mês.
O índice de roubos, que inclui desde um celular a uma residência, é crescente desde 2012. O ponto fora da curva foi 2015, quando houve leve queda de 9% no número de crimes por 100 mil habitantes, segundo a Secretaria de Segurança do Pará. No ano seguinte, a taxa voltou a crescer quase 21%. A polícia já identificou um padrão deste tipo de infração. Durante o dia, os alvos são motos, celulares e lojas. De noite, são as residências.
Para Antonia Pereira Martins, da Fundação Viver, Produzir e Preservar, houve melhoras na cidade com Belo Monte, como a construção de um novo hospital e da rede de esgoto, cujas conexões com os domicílios ainda estão sendo finalizadas. Mas as condicionantes, diz, não foram executadas no mesmo ritmo que avançavam as obras, e os recursos do acordo com a Norte Energia para aprimorar a segurança pública foram mal gastos.
— Houve um repasse razoável de dinheiro do consórcio, mas isso foi uma gota d´água no oceano. Política de segurança pública não é só arma, é investimento em educação, nos jovens. Não queremos o título de cidade mais violenta do Brasil. Queremos mudar essa realidade.
RESSACA EM ALTAMIRA
A cidade de Altamira, no Pará, vive uma espécie de ressaca. Com o empreendimento de Belo Monte praticamente concluído, o fervor econômico da cidade perdeu força. Já há lojas fechando as portas e prostitutas que se veem obrigadas a ampliar o expediente, para manter a renda que tinham quando na época do pico das obras. O boom imobiliário acabou, mas não antes de empurrar para palafitas moradores que não conseguiram acompanhar a alta nos preços dos aluguéis.
Gilmar Pires, dono da vidraçaria Casa dos Quadros, no Centro de Altamira, chegou a ter 18 funcionários, que mal davam conta dos pedidos de janelas para os novos apartamentos que surgiam na cidade. Hoje, são oito. Mas ele diz ter sorte. Antes de Belo Monte, conta, eram cinco ou seis vidraçarias no Centro. O número ultrapassou a marca de 20 durante a construção da usina e hoje não passa de 12.
O esvaziamento econômico também é percebido no dia a dia da prostituta Ana (nome fictício), que há três anos se mudou de Belém para Altamira, em busca de programas mais rentáveis. No pico da obra, ela chegava a tirar R$ 1 mil por noite. Agora, precisa começar a trabalhar por volta das 9h30m para conseguir pagar as contas e mandar dinheiro para o filho de sete anos, que mora na capital paraense.
— Trabalho por conta própria. Alugo uma casa na cidade e pago R$ 25 por hora para usar um quarto de hotel, onde recebo meus clientes. Mas ainda tá valendo a pena porque aqui o programa é R$ 100. Em Belém, é metade — diz Ana.
Com menos operários na usina, as cenas de longas filas que se formavam de madrugada para receber o salário acabaram. O trânsito também está longe do caos que imperava nas ruas no pico das obras, mas o número de motos não para de crescer. Tornou-se o principal meio de transporte para quem mora nos Reassentamentos Urbanos Coletivos (RUCs), para onde foi deslocada a população ribeirinha e onde o transporte coletivo ainda é insuficiente. Foram reassentadas 3.590 famílias, segundo a Norte Energia, responsável pela hidrelétrica.
Agora, o consórcio se depara com uma nova demanda. Muitas pessoas acabaram recorrendo às palafitas com a explosão do preço dos aluguéis nos últimos anos. Abrigaram-se em barracos construídos sobre uma lagoa no bairro Jardim Independente 1, área que, alega o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), também foi atigida pelos ciclos de cheia do Rio Xingu após a construção da usina. O MAB quer incluir essas pessoas nos planos de reassentamento da Norte Energia.
O consórcio alega que a situação desses moradores não é de sua responsabilidade, pois antes da usina já havia ocupação irregular na região e “os alagamentos lá são perenes, pois as casas estão construídas sobre um aquífero suspenso”. Ainda assim, concordou em iniciar um cadastramento das famílias. No cálculo do movimento, são 720.
— O nível da água da lagoa chegou a subir 60 metros quando foram ligadas cinco turbinas de Belo Monte. São mais de 20. Estamos aguardando um estudo de monitoramento da Agência Nacional de Águas (ANA) sobre os efeitos da barragem no lençol freático — diz Fabio Nunes Magalhães, da coordenação do MAB do Pará.
FLUXO MIGRATÓRIO
Com orçamento de cerca de R$ 30 bilhões, Belo Monte é apenas mais um dos grandes empreendimentos instalados na região amazônica marcados por intensos fluxos migratórios.
Desde os seringais que atraíram os soldados da borracha na época da Segunda Guerra Mundial, passando pela abertura da Transamazônica no governo militar até a nova fronteira agrícola e energética, a região viu suas riquezas naturais serem exploradas sem o acompanhamento de políticas públicas que mitigassem os efeitos danosos dos investimentos.
No caso de Belo Monte, a licença prévia, primeira etapa do licenciamento ambiental, saiu em fevereiro de 2010, e as obras começaram no ano seguinte. Em 2011, foi assinado um termo de cooperação técnico-financeira entre a Norte Energia e a Secretaria de Segurança Pública do Pará, no valor de R$ 100 milhões ou R$ 125 milhões em valores atualizados. O montante representava quase um terço do orçamento da pasta para todo o estado. Parte desses recursos — a Secretaria de Segurança não revela quanto — foi gasto com um helicóptero cuja manutenção é cara e que sequer fica em Altamira.
Segundo a secretaria, ele tem sido usado no combate à criminalidade na região do Xingu. Enquanto isso, a obra do presídio feminino de Altamira não foi concluída e a cidade continua sem um centro para abrigar menores infratores. Eles são enviados a outras cidades, como Belém, Santarém e Marabá, comprometendo sua reabilitação, uma vez que ficam longe da família. Só em 2016, foram enviados a essas unidades quase 40 menores.
— Houve falhas no licenciamento, mas associo essa explosão da violência em Altamira principalmente à falta de preparo do território anterior ao projeto. Isso gera pressão sobre os serviços, entre eles a segurança pública. O problema é a estrutura de política pública. O licenciamento chega tarde. Na licença prévia, o consórcio apresenta pela primeira vez seu plano para a cidade. Isso devia acontecer ao menos dois anos antes — afirma Sergio Marcondes, coordenador do estudo Recortes Socioeconomia.org sobre violência em Altamira produzido pelo Instituto Dialog.
GOVERNO QUESTIONA DADOS
Tanto o governo do estado do Pará como a Norte Energia questionam os dados que colocam Altamira no topo das cidades mais violentas. A Secretaria de Segurança Pública do Pará diz que, se excluídas as mortes violentas por causa indeterminada, a taxa de homicídio em 2015 ficaria em 58,13 por 100 mil habitantes e ainda menor em 2016 (54,58). A Norte Energia também argumenta que o Ipea considera no cálculo a estimativa de população do IBGE, que leva em conta o crescimento populacional inercial, desconsiderando o fluxo migratório decorrente do empreendimento.
Nas contas da Nova Energia, Altamira tinha 139.863 habitantes em 2015. Com isso, a taxa de homicídios da cidade cairia para 81,5, o que levaria o município a descer alguns degraus, para a 12ª posição no ranking das cidades mais violentas do Brasil. No universo das estatísticas, índices sobem e descem dependendo de como são usados. Mas o fato é que na cidade de Altamira não há uma pessoa que desconheça o título que manchou sua imagem ou que não tenha uma história de violência para contar.